Estácio, eu e meus botões
Havia um trecho da Rua Frei Caneca em que a calçada era puro esgoto. Lodo, limo e um cheiro insuportável, dia a noite, a nausear pedestres e os azarados passageiros dos ônibus que ficavam presos no trânsito justo ali. Era a mesma calçada do presídio, que na época ainda existia. A cadeia foi demolida e virou um conjunto habitacional. A calçada foi consertada. Hoje está sem cheiro.
Foi em 2006 que passei um dia por ali e encontrei, molhado em esgoto, uns cacarecos esquisitos. Umas revistas, uns negativos de fotos, umas fitas. Sempre adorei coisa velha. Meti a mão na merda, quase literalmente, e pesquei. Cheguei em casa, limpei, abri o walkman e deixei tocar. Era uma fita do Luiz Melodia.
Tinha 12 anos e uma noção até acima da média sobre música popular, fruto dos CDs estilo coletânea que tínhamos em casa. Coisa pouca, mas boa. Já adorava samba. Mas a profundidade do Melodia não conhecia ainda. Fui apresentado ali - e fui entender anos mais tarde (na real, sigo aprendendo).
Antes de continuar, um parênteses: nasci em São Gonçalo, saí de lá aos dois anos e desde então - desde a minha primeira lembrança de vida - moro no Catumbi, bairro do Centro do Rio, entre o Rio Comprido e o Estácio. Na minha infância, dizer de onde eu era não era uma questão. Todo o meu mundo era a rua onde moro e, se minha mãe não estivesse na janela, as ruas ao redor. Quando adolescente, passei a frequentar escolas diferentes, variadas em classe social e raça. Tive que usar algum lugar como referência. E escolhi o Estácio.
Nunca morei no Estácio, mas acho que ele virou a minha chave para entender o mundo e contar histórias a partir dali. Ou daqui. Sei lá. Eu encontrei, numa rua do Estácio, uma fita de um cara que fez sua carreira dizendo que era do Estácio - e citava nominalmente o bairro em pelo menos duas canções da fita . “Vinha eu descendo a ladeira do Estácio, Estácio, Estácio...”. Achei do caralho. O Estácio tinha uns caras fodas, uns artistas famosos, uma escola de samba, duas cores e uma história recheada de vilões e gente esperta. Eu poderia ser um pateta na escola, como sempre fui, mas esses eram elementos legais pra carregar comigo. Aquela coisa de 'não mexe comigo, sou do Estácio, Estácio, Esssstááácio’, com muitos esses e ás.
Obviamente, como bom otário, passei sufocos...no Estácio!, principalmente na época em que estudava por ali. Vez ou outra, a molecada da ocupação do prédio da Manchete nos prometia de porrada na saída da escola. Só não me borrava nas calças porque daria trabalho, pois voltava para casa andando no sol do meio-dia. Lembro de uma vez que uns cinco moleques me pararam e fizeram uma rodinha em volta de mim. Pergunta dali, pergunta daqui, empurra, tira a mão, questionaram de onde eu era. Eu respondi: do Catumbi. Achei que fosse apanhar - eles eram do Estácio - mas descobri que Catumbi também é uma boa resposta.
Tudo isso para dizer que apesar de torcer pela escola, usar o nome do bairro no email, falar muito dele e tal e coisa, não sou do Estácio. Mas sou também. Eu sou assustadoramente deste lugar, para o mal e para o bem. Faço besteira e justifico — sou do Estácio. Dou uma dentro e comemoro — sou do Estácio. Palmeira reflorestada do mangue já derrubado. Um simulacro de palmeira, um bonsai por assim dizer, mas ainda uma. São daqui meus heróis, meus vilões, meus personagens. Ismael, Baiaco, Brancura, Bide, Marçal, Luiz Melodia, Acyr, Marlene Povão, Ferrugem, Talarico, Da Latinha. Eu sou claramente o otário que observa os malandros. Queria ser malandro, mas acho que ocupo um papel importante também. Toda área de malandro tem que ter um otário para tomar notas. Tenho feito as minhas.